Navegando com Azazel e Gilliatt
Alessandro R. de M. Miranda
Capítulo
I
Trate-o
por Gilliatt. Entendo justo apresentar meu hospede desta forma, simples,
eficiente, misterioso, um homem do mar. E o faço pois, agora, deitado no convés
da minha humilde embarcação, ele não pode fazê-lo.
Aproveitando
o ensejo já lhes conto sua história, enquanto Gilliatt não desperta:
Quem
vê Gilliatt deitado, assim jogado no convés, desfalecido, pode facilmente se
enganar quanto a força e determinação deste trabalhador do mar. Este rapaz
enfrentou todos os elementos da natureza para se manter vivo. Mas, por
fatalidade do amor, elegeu como seu último trono a Cadeira Gild-Holm-Ur, uma formação rochosa que desenha uma
poltrona muito confortável na ilha de Guernesey, próximo ao Canal da Mancha.
Fica à beira do precipício quando a maré está baixa e submersa na maré alta.
Este homem, conhecedor das tábuas esperou que o mar subisse para afogar seus
sentimentos, não sem antes ter enganado a morte com maestria, para em seguida desejar
sucumbir a ela.
Ora,
veja só! Nosso hóspede está acordando.
-
Vamos! Peguem algo para lhe tirar o sal da boca; uma cadeira para o homem, por
favor. Azazel, o capitão do navio, ia distribuindo as ordens, andando sem
pressa pelo convés, entre cordas, polias e barris, enquanto Gilliatt acordava
surpreso e um tanto atônito.
Antes
de Gilliatt recuperar o fôlego e a luz do sol deixar que ele visse algo já
estava sentado e a sua frente a mesa posta, com talheres de ouro, uma toalha da
cor das espumas do mar, pratos de porcelana branca com detalhes azuis em suas
bordas, que em relevo formavam ondas infinitas, os cristais eram impensáveis
com o balanço do mar, mas lá estavam, impávidos. Com esta primeira imagem Gilliatt
sequer viu se aproximar uma bela jovem que aproveitou-se do espanto do rapaz para
lhe dar um gole de bebida doce no cálice que levava às mãos.
Gilliatt
quis falar, levantar, questionar, gritar, protestar... o líquido já estava na
goela. Engoliu. Esquentou. Se acalmou.
Bastou
um momento e o hóspede sentia sua cabeça leve, nada poderia lhe aborrecer,
ainda estava com os cabelos molhados. A cadeira, a maré, sua amada, tudo
parecia longínquo, lembrava dos acontecimentos como algo ocorrido em um passado
distante. Seus ombros estavam cobertos por uma manta bordada com figuras que
não conhecia. Como eram belas, pensava. O sol aquecia suas mãos, seu rosto, os
olhos aos poucos se acostumavam com a luz alva, nunca o ouro lhe pareceu tão
brilhante, a madeira do navio cantarolava ao prazer das marolas, a brisa secava
seus cabelos, estava inebriado.
Capítulo
II
-
Me parece muito bem para um naufrago. Interrompeu Azazel a vigília de Gilliatt.
-
Sim! Não. Como? Gilliatt não entendia toda a situação, imaginava ter sido salvo
de si mesmo, tinha perguntas mas não se importava com as respostas, tudo lhe
parecia belo. Onde estavam aquelas cores em toda sua existência que nunca as
tinha visto?! Mudaram a paleta do mundo e não lhe avisaram?!
-
Não se preocupe, Gilliatt. Você é meu hóspede, já sabemos sua história e vamos
navegar juntos. Nada do que já viveu te afligirá. Mas, note que intrigante
ironia: estamos na mesma moeda, de lados opostos; você renunciou a vida por um
amor, eu desejo a vida por todos eles. Já tive muitas mulheres, alguns filhos,
e estes tiveram muita fama, outrora, o que causou a ira de alguns. Era só
diversão e depois vieram as teorias. Existem homens com muita imaginação! Não
há segredo que gosto delas e está acabado. Ainda serão minha perdição essas
mulheres. O danado caprichou no desenho delas.
-
Estou confuso. O que é tudo isso?
Gilliatt
agora conseguia observar um pouco do que estava ao seu redor, sentia a madeira
sob seus pés descalços, percebia toda a mesa posta com um esmero e luxo que até
então aquele trabalhador do mar não conhecia. O seu interlocutor falava como se
fossem velhos amigos. E assim ele já o considerava. O sol reluzia, estavam na
sombra. Começaram a servir, o aroma do carneiro rescendia algumas lembranças.
Curioso como ervas cheiram campos inteiros. O vinho tinto era grosso e se
arrastava pela taça, quando um raio de sol cortava a sombra e a acertava preenchia
a toalha com rubis, dezenas de rubis. As frutas e saladas tinham um frescor que
não condizia com o mar, que enruga, envelhece, corrói as peles pela brisa mesmo
que lhes confira certo sabor.
A
fome despertava no hóspede de Azazel com fulgor e este, que se calava por um
momento, observava Gilliatt como uma criança que se depara pela primeira vez
com um arranha-céu, entende de imediato seu nome, não entende sua engenharia, almeja
nada menos que seu cume.
-
Um brinde ao mar! Este elemento que nos traz o desconhecido, que nos brinda com
suas ondas aos milhões e seus chafarizes eternos.
Gilliatt
parecia acordar com o brinde proposto por Azazel, com a agilidade de marinheiro
pôs-se de pé, esqueceu os rubis, não se importou com o balanço do mar, ergueu a
taça como se tivessem içado sua bandeira, encheu os pulmões como para cantar um
hino, brindou olhando seu anfitrião e tomou a taça toda de um gole só, o que
lhe arrepiou os pelos e lhe aqueceu todo o corpo. Será possível acordar para sonhar?!
Azazel
dizia sorrindo: - Temos fome e sede, tratemos do corpo antes de tudo. Os dois
devoravam a carne do carneiro, bebiam vinho e ouviam tambores, trombetas e
cordas, canções celestiais.
Capítulo
III
Após
a ceia levantaram-se, limparam-se em toalhas brancas embebidas em água morna,
que exalavam um leve aroma de cravo. Foram fumar cachimbo na cabine do capitão.
O tempo começava a virar. O clima nos mares têm dessas coisas, não respeita nem
o andamento de uma refeição, o sol se encobre de escuridão, as ondas se
enraivecem com as pirraças do vento e os raios riem às trovoadas dos barcos que
se encontram no meio destas tormentas.
A
cabine do capitão era esplendorosa. A madeira escura dava um tom de seriedade,
os tecidos vermelhos coloriam o ambiente e as peças douradas fascinavam,
retocavam a sala por todos os cantos. Era bem iluminada pelo vitral colorido que
ficava na popa do barco e tomava uma parede toda do camarote; na outra parede
uma estante de fora a fora com livros que pareciam ter mil anos, além de
objetos curiosos que de certa forma davam uma graça macabra àquela biblioteca,
reconhecia-se com facilidade uma linda adaga de prata, um cálice antigo e uma
luneta dourada; do lado oposto encontrava-se uma lareira de pedra, protegida
por grades de metal trabalhado de forma delicada o que reforçava a beleza da
peça, mas não lhe tirava a imprudência, já que os piores dos incêndios são
aqueles no alto mar, é próprio de censura o luxo do calor do fogo quando
embarcado; próximo a lareira um conjunto de poltronas e um sofá, todos cobertos
por peles grossas e macias; uma chaleira era aquecida e soltava um vapor
constante; no meio da sala uma mesa com 7 cadeiras e próximo ao vitral uma
escrivaninha de trabalho, no centro a sombra de Azazel sentado em sua cadeira
de espaldar alto. Ele preenchia a cabine que assim estava completa. Gilliatt
sentiu-se confortável para acompanhar seu anfitrião em algumas baforadas,
sentou-se em uma das poltronas que ficavam de frente para escrivaninha e de
costas para mesa. Desta forma tinha o vitral a sua frente.
-
Me diga meu caro, Gilliatt, o que lhe fez perder a razão? Disparou Azazel ao
seu convidado entre uma baforada e outra.
Gilliatt
que terminava de acender seu cachimbo respondeu com a calma daqueles que já
muito meditaram sobre o tema:
-
Quando Deruchette partiu, com minha benção é verdade, entendi que era
necessário renovar ou morrer, isto é, me transformar para viver nova vida, ou,
mumificar-me, persistir para perdurar. Todavia perdurar para viver na sombra do
que já foi. Como nova vida também não me interessava escolhi a cadeira na maré
alta. Só não entendo como fui resgatado e como o Sr. sabe tanto a meu respeito.
Azazel
parecia absorto por seus próprios pensamentos, mas estava remoendo o que seu
convidado acabara de dizer. Esperava certa confusão daquele homem do mar, mas
ele falava com uma certeza intimidadora, sensação nova para o capitão. Ora, o
homem tinha decidido pela morte, quer decisão mais desastrada?! E agora falava
como se fosse mestre na coisa toda! Também pensava nele próprio, seu paradigma ali,
na sua frente, e se perguntava: seria mesmo necessário que aquele homem tivesse
de escolher entre o delicado e o bruto, entre puro e perverso, terno e cruel,
audaz e tímido, sincero e teatral... contradições e antinomias que se excluíam?
Era justo exigir a escolha por Gilliatt? Poderia censurá-lo? O dualismo do
convidado fez Azazel lembrar da chaleira, que assobiava feliz.
-
Um homem do mar não costuma negar um bom café. Então creio que posso lhe servir
uma xícara. Esta coada é de um grão que me foi oferecido por um Dr., de Itaguaí,
muito amigo meu, com quem também já discuti questões parecidas a essas que
falamos agora. Azazel enquanto discursava foi preparando o café, que logo
encheu a cabine com aquele perfume da boa torra. Em seguida foi servir Gilliatt,
que realmente não via graça em negar uma bebida quente enquanto o vento uivava,
coisas da sabedoria de qualquer marinheiro.
Capítulo
VI
No
primeiro gole a surpresa, o barco sofreu um abalroamento lateral de uma onda de
proporções descomunais, o que fez com que Gilliatt emborcasse a xícara e
queimasse a fuça por ter enterrado os bigodes no café, também derramou um tanto
nas calças, um susto raro para aquele homem acostumado com o tango do mar.
Mas
aquele golpe fora inesperado a todos. Azazel também se admirou e demonstrou
certo descontentamento quando viu que muitos de seus livros se esparramaram
pela cabine, que sua luneta havia sido arremessada no piso duro e trincou uma
das lentes, além do movimento ter feito uma das brasas saltar da lareira direto
para uma linda pele de tigre que cobria o sofá o que abriu um furo em seu
flanco esquerdo e liberou um cheiro desagradável de pelo queimado. Só o que
parecia estar pregado ao chão era o próprio Azazel, que ainda segurava sua
xícara de café com uma das mãos e o bule com a outra.
Gilliatt
se precipitou para fora da cabine e encontrou um verdadeiro caos: a onda não só
balançou o barco como soltou as amarras das velas, estas se inflando em momento
indevido rasgaram-se, não sem antes
forçar o mastro principal de forma a lhe rachar verticalmente de cima até o
convés. O barulho que só podia ser distinguido dos trovões por homens do mar,
que sentem nos ossos quando a madeira do barco se quebra. Os marinheiros
corriam, gritavam, faziam sinais com os braços, alguns usavam os chapéus como
extensão das braços, uma forma de gritar com gestos, cordas eram esticadas, nós
eram atados com facilidade como que costurados por mãos hábeis e naquele turbilhão
salgado, com raios e trovões Gilliatt sentiu paz. O caos estava bem ordenado.
A
tripulação do navio era intrépida e destemida, não perderam tempo quando as
amarras das velas se soltaram. Dois marinheiros subiram no mastro principal, se
agarrando às cordas, não fosse o clarão dos raios e urgência do momento
pareceria uma brincadeira de criança, ou uma competição acirrada e divertida,
tamanha a facilidade dos homens na escalada. Estes levavam uma faca em suas
bocas que chegando ao topo do mastro usaram para cortar as velas já danificadas,
estas caíram pesadas metade no mar, parte no convés. Na descida os homens que
levavam braçadeiras de metal presas ao cinto, já foram instalando-as no mastro
e com ajuda de martelos, que lhe foram arremessados, juntaram as metades do
mastro, restabelecendo sua rigidez até a base, no convés, no porão as travas da
estrutura não deixaram a rachadura terminar seu trabalho. Em questão de minutos
já levavam outra vela para o lugar da antiga, reforçaram as amarras,
restabeleceram o curso do navio de encontro as ondas, pois a tempestade é fera que
se enfrenta de frente, cara a cara.
-
Venha homem, eles sabem o que fazem. Não deixe o que o café esfrie ainda mais.
Gritava o capitão de dentro de sua cabine, já acomodado novamente em sua
poltrona, um marinheiro terminava de recolher os livros e a pele já tinha sido
trocada por outra ainda mais bela. Na cabine o que restava do susto era só a
mancha de café na calça de Gilliatt.
-
Gilliatt, você me pareceu um tanto assustado com todo o reboliço da maré!
-
Bem sei o que estes tipos de ondas fazem aos navios, rompe-se a estibordo e a
força do mar roda o lado fendido para o fundo, a agua entra aos borbotões até o
barco retornar a pique; mas o intervalo é mero capricho da tormenta; se o barco
não se quebra logo ao meio, com seu casco avariado a água não para de entrar e
vai deixando os marinheiros sentirem saudades de seu navio antes de enfrentar o
naufrágio. Nesta sala ainda teríamos o azar da lareira como chão. Demos sorte.
A tripulação é de excelente qualidade, nunca vi tanta presença de espírito,
onde os encontrou?
-
São velhos lobos do mar e conhecem bem a embarcação. Mas o que lhe atormenta no
naufrágio? Se me permite perguntar. Sei que não é o afogamento, pois este
caminho você já percorreu.
Capítulo
V
Gilliatt
ficou pasmo, ele mesmo não tinha se questionado de onde viera o medo, a vontade
de proteger a própria vida e defender aquela tripulação que ele sequer
conhecia. E era medo sim o que havia sentido, sem dúvidas. Talvez sentimento de
gratidão, por terem lhe tirado do mar. Não. Agiria daquela forma mesmo em
outras circunstâncias e sendo sincero ele sabia que também atuara por sua
própria vida. A razão? Sabe-se lá.
-
Sabe-se cá, meu caro. Interrompeu Azazel os pensamentos de Gilliatt, que já
estava sentado, com nova xícara de café nas mãos.
Um
marinheiro entrou, ainda molhado da tempestade e esbaforido, cochichou algo no
ouvido do capitão sem maiores formalidades, apesar de visivelmente consternado.
Recebeu como resposta um olhar, ficou satisfeito e respirou aliviado, fez uma
reverência a ambos e saiu apressado.
Gilliatt
imaginou entender todo o diálogo entre capitão e marujo, reconheceu o primeiro
imediato e já perguntou ao capitão, com certa impaciência: - E vamos parar onde
para trocarmos o mastro?
-
Estamos próximos de um arquipélago, mas só soltaremos as velas quando o tempo
melhorar e talvez os seus conhecimentos sejam necessários com a tripulação.
Dizia o capitão Azazel.
-
E o que você ia dizendo sobre os meus medos? Indagou Gilliatt como se
perguntasse para um espelho.
-
Seus medos revelam seus desejos. Só teme a morte quem deseja a vida. Esta era a
questão que me impedia de terminar a lista e agora esta acabada. Seu pavor me
disse tudo. Desculpe-me o subterfúgio, mas precisava ler muito em seus olhos,
palavras não bastariam. O medo pode ser instrumento eficaz em muitos meios. E costumam
ser rigorosos em casos como o seu, caso de pena capital. Entende?
Gilliatt
terminara sua xícara de café e a deixava em cima da escrivaninha, com a
porcelana ainda fumegante. Olhava para Azazel, que perdera seu ar de indecisão
e falava como se detentor de toda sabedoria. Argumentava coisas sem sentido
para aquele homem simples.
Azazel
percebendo que seu convidado ficara desconcertado resolveu detalhar sua
demanda:
-
Veja, minha função é relatar suas faltas. Para iniciar a lista tive que escarafunchar
sua vida toda. Tenho meios de saber muitas coisas, sou persuasivo como pode
imaginar, mas algumas dúvidas surgiram. Especialmente com seu repouso na cadeira Gild-Holm-Ur. Então me aproveitando do mal tempo que se aproximava
pedi para que o imediato manobrasse a embarcação no momento adequado, para que
recebemos uma onda de través. É certo que não esperava manobra tão descuidada
de tão boa tripulação, a ponto de danificar a embarcação, mas isso será
reparado em breve. Acontece que precisava, digamos assim, te dar um susto, ler
seu medo.
- Como isso? Então tudo não passou de uma
brincadeira?! Acha engraçado colocar a vida de todos em risco?! E que história
é essa de escarafunchar minha vida?! Que trabalho é esse de listar minhas
faltas?! Gilliatt estava indignado, mas se sentia intimidado, o coração disparado
lhe deixava com a respiração ofegante, as artérias do pescoço lhe saltavam, a
cabeça rodava, a vista se resumia a um funil e as narinas pareciam ter
encolhido, não conseguia aspirar a quantidade de ar necessário para o momento.
- Não vamos esquecer de respirar, disse Azazel, que
levantou e foi preparar mais uma bebida. Ele continuou a falar de costas para Gilliatt,
como que dando privacidade à sofreguidão do homem: - O tempo está melhorando,
depois da tempestade a bonança, como dizem. Não dê tanta importância ao pequeno
imprevisto, como disse era para ter sido uma pequena manobra e como bem viu a
tripulação é das melhores. Seria injusto dizer que parece hipocrisia você se
ofender por eu colocar sua vida em risco se até pouco tempo você a estava
oferecendo a Iemanjá. E eu precisava saber se isto era simplesmente por não
prezá-la ou por suas razões com sua amada. Agora tenho claro, pois vi em seus
olhos, que o Vossa Senhoria tem muito apresso pela vida, então só pode ser a
segunda alternativa a verdadeira. Isto me causa grande inquietação e
curiosidade, mas não cabe a mim julgar. Muito menos condenar. Só relato e para
isso busco saber, tenho que investigar. Se minha função o desagrada, não ataque
o mensageira. Estou aqui para cumprir minha função, mas nada impede que faça
nos meus moldes. Beba, vai acalmá-lo. Azazel ofereceu uma bebida para Gilliatt,
que bebeu mais para se ver livre daquele cálice que lhe era empurrado.
-
Como ia dizendo, Gilliatt, tinha que resolver a gravidade de sua falha e até mesmo
se esta ocorrera. E conclui, no fim das contas, que não ocorreu falta alguma. Você
foi até a cadeira para deixar a maré encher e morrer, é verdade. Mas fez isto
pois já se sentia no túmulo. Talvez pudesse desistir. E como uma criança que
não reconhece o perigo caminhou para o abismo. Minha embarcação passava. Te
resgatei. Não há o que listar e está acabado.
Neste
momento Gilliatt ouviu a cadeira atrás de si arrastar com grande estrondo, se
virou e viu um homem alto, com invejável espaldar, rosto fechado, olhar
inquisitivo. Mas em que momento aquele homem entrara e desde quando estava
sentado? Quem era? Gilliatt não sabia, a bebida lhe acalmara mas também lhe aturdia.
-
Olá, Miguel! Já conhece meu hóspede? Disse um Azazel contente, como se tivesse
recebendo um velho amigo.
Capítulo
VI
-
Deixe disso, sabe muito bem que o conheço. Pelo visto melhor que você. Como não
há nada para listar?! Mais um dos seus jogos? Disparou Miguel à Azazel, sem se dirigir
a Gilliatt, que naquele momento sequer respirava, mas espiava. Sentiu-se
sentado diante de dois gigantes, cada um a seu modo, cada qual com sua
carranca. Sentia-se com um mero peão em jogo de peças graúdas.
-
Não seja rude meu caro, Miguel. Deixe que eu o apresente ao meu convidado desta
noite. Azazel apontou para Gilliatt, mas Miguel não desviou o olhar.
-
Sabe que não preciso de sua simpatia Azazel e que meu tempo é precioso.
-
Sempre cumprindo seu dever a risca, não é? Almeja promoção, só pode! E se
dirigindo para Gilliatt informou: - Este é o general, o barqueiro, o guardião...
mais alguma função meu Senhor? Disse Azazel em tom de zombaria se dirigindo à
Miguel, que parecia ainda mais impaciente. - Enfim, meu velho amigo Miguel.
-
Deixe de embromação e deboche, sabe bem que não deve interferir... Azazel
interrompeu: - E devia deixar essa pobre alma perecer enquanto passeava por
estes mares? É carne muito nobre para os bichos do mar e me afeiçoei ao rapaz.
Nesta
hora Miguel esbravejou: - Não zombe comigo! Liste suas faltas que vou leva-lo.
-
Parece que não lhe bastam suas funções Miguel, quer ainda as minhas?! E outra, o homem está bem, só tomou um pouco
de água salgada, não pode leva-lo a lugar algum.
-
Mas sua falta foi grave e sabe que se afogaria sem sua interferência, Azazel.
-
Não temos certeza se ele se afogaria, o homem produziu feitos memoráveis, tem
uma força descomunal, um folego infinito, nada como um peixe. Bem poderia ter se
salvado, braçada a braçada até a costa, até outra embarcação, com ajuda de uma
sereia quem sabe, possibilidades infinitas.
Neste
momento Gilliatt se intrometeu: - Sr. Capitão, parece que neste ponto o Sr.
Miguel tem certa razão, mesmo um exímio nadador não conseguiria...
-
Calado! Interrompeu Azazel. Isto tem pouca importância, o que Miguel quer é a
maldita lista com suas faltas, digo, com sua falta: recusar o presente, ter
largado o osso ou seja lá a expressão que prefira, talvez suicídio, autocídio, autodestruição.
Azazel ia recuperando o fôlego que tinha perdido junto com a calma por um
instante.
–
Ocorre que a prática não é bem vista, entende?. Embora você, Gilliatt, pudesse
ter obtido sucesso em sua empreitada acredito que no caso devemos analisar suas
razões. A intenção era acabar com a vida por desprezá-la? Não. Isto ficou muito
claro há pouco. Você, Gilliatt, ama a vida e queria afogar tão somente seu
sentimento, como estava impregnado dele não viu solução senão jogar a mistura
toda no mar. Resposta pouco arrazoada
para problema tão complexo. Se a coisa fosse simples eu mesmo não perderia o
sono com tais questões.
-
Não podemos interferir nas escolhas deles, Azazel. Disse Miguel já com tom
pacificador ao entender que não era mera brincadeira do capitão e condolente
com suas indagações.
-
Não entrarei nesta discussão novamente, Miguel. Você sabe que tenho convicções
distintas e que para mim o livre arbítrio é uma utopia estúpida; se antes um
sonho plausível hoje algo intangível. Azazel cuspia as palavras de forma
ríspida.
-
Temos regras a serem seguidas! Miguel retornava seu tom ameaçador.
Azazel,
perdera seu sorriso de canto sempre presente naquela face. De pensativo passou
a altivo, levantou-se de um salto, a cadeira em que estava sentado tombou para
trás, levantou o braço, ao que Miguel arregalou os olhos, e, desceu sua mão na cara
de Gilliatt. Este que estava sentado na cadeira, observando calado, ficou
inteiramente aturdido pelo golpe que balançou toda sua caixa craniana, teve de
cuspir o sangue que lhe enchia a boca antes mesmo de brandir com seu agressor.
Miguel,
que não esperava por todo aquele desenlace assistiu surpreso e fixou os olhos
no sangue em cima da escrivaninha, cuspido por Gilliatt e balbuciou entre
dentes algo como: vivo!
Tudo
aconteceu em segundos e antes que Gilliatt recupera-se o fôlego roubado pela
bofetada, Azazel anunciou com ar pragmático: - Está aí sua regra a ser seguida,
Miguel. É o que lhe basta?
-
Isso é trapaça!
-
Esse é o jogo. Não escrevi as regras, se você não gosta delas: azar! Sabe a
quem reclamar. Se lhe falta coragem para falar diretamente vá ter com o vigário, mas
marque hora, pois este precisaria de mil ouvidos para escutar todos seus
lamentos e lamuriações.
Miguel
tinha os olhos em brasa. Sabia que nada estava sendo bem observado por Azazel,
que era mago em distorcer, mas para fazer algo teria ele mesmo de quebrar seus
desígnios, interpreta-los, arranjar todas as regras novamente a seu gosto. Isto
podia trazer-lhes graves consequências, muito trabalho para pouco benefício.
Como não encontrou saída naquele beco, resolveu retornar. Olhou mais uma vez
para o sangue na mesa, voltou os olhos para Azazel, não disse mais nada, rodou
nos calcanhares e saiu com os pensamentos embaralhados, com o orgulho lhe
trançando as pernas e com a bochecha quente, como se ele mesmo tivesse recebido
aquele tapa. Quando saiu da cabine a porta se fechou atrás dele com justo
estrondo.
Gilliatt
que mesmo após o tapa não conseguia pronunciar sequer uma sílaba olhava para
Azazel, que parecia ter recuperado seu bom humor. O sorriso lhe crescia nas
faces, os olhos brilhavam como em uma criança que admira sua arte bem feita.
-
Gilliatt, não chore por esse ferimento de guerra. É algo desprezível diante de
sua vitória.
-
Mas eu nunca estive em guerra! Conseguiu balbuciar Gilliatt, ainda desconfiado.
-
Não seja ingênuo, sempre há guerra e paz. E pela tarimba do general que
enviaram sei que devo esperar retaliações. Mas por hora não devemos nos
preocupar, vá se limpar e colocar algo nesta ferida, o jantar logo será servido
e temos motivos para comemorar e cear como reis, o traje deve ser de gala, a
bebida da melhor qualidade e a comida da mais saborosa. Talvez alguns
convidados para animar. Um coral de virgens quem sabe. Vá e não esqueça de se aprontar,
os marujos te guiaram até seus aposentos. Vamos festejar!
Gilliatt
foi saindo da cabine do capitão Azazel, já
sem dor. Na verdade sentia certo êxtase. Estava contagiado com toda a
alegria do capitão, ouvia a algazarra fora da cabine. Entendeu o que se
passara: não era peão, era rei. E, ao final, concluiu que aquilo era a vitória,
por uma simples razão: vivia.
Fim.