terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Navegando com Azazel e Gilliatt





Navegando com Azazel e Gilliatt
Alessandro R. de M. Miranda



Capítulo I

Trate-o por Gilliatt. Entendo justo apresentar meu hospede desta forma, simples, eficiente, misterioso, um homem do mar. E o faço pois, agora, deitado no convés da minha humilde embarcação, ele não pode fazê-lo.

Aproveitando o ensejo já lhes conto sua história, enquanto Gilliatt não desperta:

Quem vê Gilliatt deitado, assim jogado no convés, desfalecido, pode facilmente se enganar quanto a força e determinação deste trabalhador do mar. Este rapaz enfrentou todos os elementos da natureza para se manter vivo. Mas, por fatalidade do amor, elegeu como seu último trono a Cadeira Gild-Holm-Ur, uma formação rochosa que desenha uma poltrona muito confortável na ilha de Guernesey, próximo ao Canal da Mancha. Fica à beira do precipício quando a maré está baixa e submersa na maré alta. Este homem, conhecedor das tábuas esperou que o mar subisse para afogar seus sentimentos, não sem antes ter enganado a morte com maestria, para em seguida desejar sucumbir a ela.

Ora, veja só! Nosso hóspede está acordando.

- Vamos! Peguem algo para lhe tirar o sal da boca; uma cadeira para o homem, por favor. Azazel, o capitão do navio, ia distribuindo as ordens, andando sem pressa pelo convés, entre cordas, polias e barris, enquanto Gilliatt acordava surpreso e um tanto atônito.

Antes de Gilliatt recuperar o fôlego e a luz do sol deixar que ele visse algo já estava sentado e a sua frente a mesa posta, com talheres de ouro, uma toalha da cor das espumas do mar, pratos de porcelana branca com detalhes azuis em suas bordas, que em relevo formavam ondas infinitas, os cristais eram impensáveis com o balanço do mar, mas lá estavam, impávidos. Com esta primeira imagem Gilliatt sequer viu se aproximar uma bela jovem que aproveitou-se do espanto do rapaz para lhe dar um gole de bebida doce no cálice que levava às mãos.

Gilliatt quis falar, levantar, questionar, gritar, protestar... o líquido já estava na goela. Engoliu. Esquentou. Se acalmou.

Bastou um momento e o hóspede sentia sua cabeça leve, nada poderia lhe aborrecer, ainda estava com os cabelos molhados. A cadeira, a maré, sua amada, tudo parecia longínquo, lembrava dos acontecimentos como algo ocorrido em um passado distante. Seus ombros estavam cobertos por uma manta bordada com figuras que não conhecia. Como eram belas, pensava. O sol aquecia suas mãos, seu rosto, os olhos aos poucos se acostumavam com a luz alva, nunca o ouro lhe pareceu tão brilhante, a madeira do navio cantarolava ao prazer das marolas, a brisa secava seus cabelos, estava inebriado.


Capítulo II

- Me parece muito bem para um naufrago. Interrompeu Azazel a vigília de Gilliatt.

- Sim! Não. Como? Gilliatt não entendia toda a situação, imaginava ter sido salvo de si mesmo, tinha perguntas mas não se importava com as respostas, tudo lhe parecia belo. Onde estavam aquelas cores em toda sua existência que nunca as tinha visto?! Mudaram a paleta do mundo e não lhe avisaram?!

- Não se preocupe, Gilliatt. Você é meu hóspede, já sabemos sua história e vamos navegar juntos. Nada do que já viveu te afligirá. Mas, note que intrigante ironia: estamos na mesma moeda, de lados opostos; você renunciou a vida por um amor, eu desejo a vida por todos eles. Já tive muitas mulheres, alguns filhos, e estes tiveram muita fama, outrora, o que causou a ira de alguns. Era só diversão e depois vieram as teorias. Existem homens com muita imaginação! Não há segredo que gosto delas e está acabado. Ainda serão minha perdição essas mulheres. O danado caprichou no desenho delas.

- Estou confuso. O que é tudo isso?

Gilliatt agora conseguia observar um pouco do que estava ao seu redor, sentia a madeira sob seus pés descalços, percebia toda a mesa posta com um esmero e luxo que até então aquele trabalhador do mar não conhecia. O seu interlocutor falava como se fossem velhos amigos. E assim ele já o considerava. O sol reluzia, estavam na sombra. Começaram a servir, o aroma do carneiro rescendia algumas lembranças. Curioso como ervas cheiram campos inteiros. O vinho tinto era grosso e se arrastava pela taça, quando um raio de sol cortava a sombra e a acertava preenchia a toalha com rubis, dezenas de rubis. As frutas e saladas tinham um frescor que não condizia com o mar, que enruga, envelhece, corrói as peles pela brisa mesmo que lhes confira certo sabor.

A fome despertava no hóspede de Azazel com fulgor e este, que se calava por um momento, observava Gilliatt como uma criança que se depara pela primeira vez com um arranha-céu, entende de imediato seu nome, não entende sua engenharia, almeja nada menos que seu cume.

- Um brinde ao mar! Este elemento que nos traz o desconhecido, que nos brinda com suas ondas aos milhões e seus chafarizes eternos.

Gilliatt parecia acordar com o brinde proposto por Azazel, com a agilidade de marinheiro pôs-se de pé, esqueceu os rubis, não se importou com o balanço do mar, ergueu a taça como se tivessem içado sua bandeira, encheu os pulmões como para cantar um hino, brindou olhando seu anfitrião e tomou a taça toda de um gole só, o que lhe arrepiou os pelos e lhe aqueceu todo o corpo. Será possível acordar para sonhar?!

Azazel dizia sorrindo: - Temos fome e sede, tratemos do corpo antes de tudo. Os dois devoravam a carne do carneiro, bebiam vinho e ouviam tambores, trombetas e cordas, canções celestiais.



Capítulo III

Após a ceia levantaram-se, limparam-se em toalhas brancas embebidas em água morna, que exalavam um leve aroma de cravo. Foram fumar cachimbo na cabine do capitão. O tempo começava a virar. O clima nos mares têm dessas coisas, não respeita nem o andamento de uma refeição, o sol se encobre de escuridão, as ondas se enraivecem com as pirraças do vento e os raios riem às trovoadas dos barcos que se encontram no meio destas tormentas.

A cabine do capitão era esplendorosa. A madeira escura dava um tom de seriedade, os tecidos vermelhos coloriam o ambiente e as peças douradas fascinavam, retocavam a sala por todos os cantos. Era bem iluminada pelo vitral colorido que ficava na popa do barco e tomava uma parede toda do camarote; na outra parede uma estante de fora a fora com livros que pareciam ter mil anos, além de objetos curiosos que de certa forma davam uma graça macabra àquela biblioteca, reconhecia-se com facilidade uma linda adaga de prata, um cálice antigo e uma luneta dourada; do lado oposto encontrava-se uma lareira de pedra, protegida por grades de metal trabalhado de forma delicada o que reforçava a beleza da peça, mas não lhe tirava a imprudência, já que os piores dos incêndios são aqueles no alto mar, é próprio de censura o luxo do calor do fogo quando embarcado; próximo a lareira um conjunto de poltronas e um sofá, todos cobertos por peles grossas e macias; uma chaleira era aquecida e soltava um vapor constante; no meio da sala uma mesa com 7 cadeiras e próximo ao vitral uma escrivaninha de trabalho, no centro a sombra de Azazel sentado em sua cadeira de espaldar alto. Ele preenchia a cabine que assim estava completa. Gilliatt sentiu-se confortável para acompanhar seu anfitrião em algumas baforadas, sentou-se em uma das poltronas que ficavam de frente para escrivaninha e de costas para mesa. Desta forma tinha o vitral a sua frente.

- Me diga meu caro, Gilliatt, o que lhe fez perder a razão? Disparou Azazel ao seu convidado entre uma baforada e outra.

Gilliatt que terminava de acender seu cachimbo respondeu com a calma daqueles que já muito meditaram sobre o tema:

- Quando Deruchette partiu, com minha benção é verdade, entendi que era necessário renovar ou morrer, isto é, me transformar para viver nova vida, ou, mumificar-me, persistir para perdurar. Todavia perdurar para viver na sombra do que já foi. Como nova vida também não me interessava escolhi a cadeira na maré alta. Só não entendo como fui resgatado e como o Sr. sabe tanto a meu respeito.

Azazel parecia absorto por seus próprios pensamentos, mas estava remoendo o que seu convidado acabara de dizer. Esperava certa confusão daquele homem do mar, mas ele falava com uma certeza intimidadora, sensação nova para o capitão. Ora, o homem tinha decidido pela morte, quer decisão mais desastrada?! E agora falava como se fosse mestre na coisa toda! Também pensava nele próprio, seu paradigma ali, na sua frente, e se perguntava: seria mesmo necessário que aquele homem tivesse de escolher entre o delicado e o bruto, entre puro e perverso, terno e cruel, audaz e tímido, sincero e teatral... contradições e antinomias que se excluíam? Era justo exigir a escolha por Gilliatt? Poderia censurá-lo? O dualismo do convidado fez Azazel lembrar da chaleira, que assobiava feliz.

- Um homem do mar não costuma negar um bom café. Então creio que posso lhe servir uma xícara. Esta coada é de um grão que me foi oferecido por um Dr., de Itaguaí, muito amigo meu, com quem também já discuti questões parecidas a essas que falamos agora. Azazel enquanto discursava foi preparando o café, que logo encheu a cabine com aquele perfume da boa torra. Em seguida foi servir Gilliatt, que realmente não via graça em negar uma bebida quente enquanto o vento uivava, coisas da sabedoria de qualquer marinheiro.



Capítulo VI

No primeiro gole a surpresa, o barco sofreu um abalroamento lateral de uma onda de proporções descomunais, o que fez com que Gilliatt emborcasse a xícara e queimasse a fuça por ter enterrado os bigodes no café, também derramou um tanto nas calças, um susto raro para aquele homem acostumado com o tango do mar.

Mas aquele golpe fora inesperado a todos. Azazel também se admirou e demonstrou certo descontentamento quando viu que muitos de seus livros se esparramaram pela cabine, que sua luneta havia sido arremessada no piso duro e trincou uma das lentes, além do movimento ter feito uma das brasas saltar da lareira direto para uma linda pele de tigre que cobria o sofá o que abriu um furo em seu flanco esquerdo e liberou um cheiro desagradável de pelo queimado. Só o que parecia estar pregado ao chão era o próprio Azazel, que ainda segurava sua xícara de café com uma das mãos e o bule com a outra.

Gilliatt se precipitou para fora da cabine e encontrou um verdadeiro caos: a onda não só balançou o barco como soltou as amarras das velas, estas se inflando em momento indevido rasgaram-se,  não sem antes forçar o mastro principal de forma a lhe rachar verticalmente de cima até o convés. O barulho que só podia ser distinguido dos trovões por homens do mar, que sentem nos ossos quando a madeira do barco se quebra. Os marinheiros corriam, gritavam, faziam sinais com os braços, alguns usavam os chapéus como extensão das braços, uma forma de gritar com gestos, cordas eram esticadas, nós eram atados com facilidade como que costurados por mãos hábeis e naquele turbilhão salgado, com raios e trovões Gilliatt sentiu paz. O caos estava bem ordenado.

A tripulação do navio era intrépida e destemida, não perderam tempo quando as amarras das velas se soltaram. Dois marinheiros subiram no mastro principal, se agarrando às cordas, não fosse o clarão dos raios e urgência do momento pareceria uma brincadeira de criança, ou uma competição acirrada e divertida, tamanha a facilidade dos homens na escalada. Estes levavam uma faca em suas bocas que chegando ao topo do mastro usaram para cortar as velas já danificadas, estas caíram pesadas metade no mar, parte no convés. Na descida os homens que levavam braçadeiras de metal presas ao cinto, já foram instalando-as no mastro e com ajuda de martelos, que lhe foram arremessados, juntaram as metades do mastro, restabelecendo sua rigidez até a base, no convés, no porão as travas da estrutura não deixaram a rachadura terminar seu trabalho. Em questão de minutos já levavam outra vela para o lugar da antiga, reforçaram as amarras, restabeleceram o curso do navio de encontro as ondas, pois a tempestade é fera que se enfrenta de frente, cara a cara.

- Venha homem, eles sabem o que fazem. Não deixe o que o café esfrie ainda mais. Gritava o capitão de dentro de sua cabine, já acomodado novamente em sua poltrona, um marinheiro terminava de recolher os livros e a pele já tinha sido trocada por outra ainda mais bela. Na cabine o que restava do susto era só a mancha de café na calça de Gilliatt.

- Gilliatt, você me pareceu um tanto assustado com todo o reboliço da maré!

- Bem sei o que estes tipos de ondas fazem aos navios, rompe-se a estibordo e a força do mar roda o lado fendido para o fundo, a agua entra aos borbotões até o barco retornar a pique; mas o intervalo é mero capricho da tormenta; se o barco não se quebra logo ao meio, com seu casco avariado a água não para de entrar e vai deixando os marinheiros sentirem saudades de seu navio antes de enfrentar o naufrágio. Nesta sala ainda teríamos o azar da lareira como chão. Demos sorte. A tripulação é de excelente qualidade, nunca vi tanta presença de espírito, onde os encontrou?

- São velhos lobos do mar e conhecem bem a embarcação. Mas o que lhe atormenta no naufrágio? Se me permite perguntar. Sei que não é o afogamento, pois este caminho você já percorreu.



Capítulo V

Gilliatt ficou pasmo, ele mesmo não tinha se questionado de onde viera o medo, a vontade de proteger a própria vida e defender aquela tripulação que ele sequer conhecia. E era medo sim o que havia sentido, sem dúvidas. Talvez sentimento de gratidão, por terem lhe tirado do mar. Não. Agiria daquela forma mesmo em outras circunstâncias e sendo sincero ele sabia que também atuara por sua própria vida. A razão? Sabe-se lá.

- Sabe-se cá, meu caro. Interrompeu Azazel os pensamentos de Gilliatt, que já estava sentado, com nova xícara de café nas mãos.

Um marinheiro entrou, ainda molhado da tempestade e esbaforido, cochichou algo no ouvido do capitão sem maiores formalidades, apesar de visivelmente consternado. Recebeu como resposta um olhar, ficou satisfeito e respirou aliviado, fez uma reverência a ambos e saiu apressado.

Gilliatt imaginou entender todo o diálogo entre capitão e marujo, reconheceu o primeiro imediato e já perguntou ao capitão, com certa impaciência: - E vamos parar onde para trocarmos o mastro?

- Estamos próximos de um arquipélago, mas só soltaremos as velas quando o tempo melhorar e talvez os seus conhecimentos sejam necessários com a tripulação. Dizia o capitão Azazel.

- E o que você ia dizendo sobre os meus medos? Indagou Gilliatt como se perguntasse para um espelho.

- Seus medos revelam seus desejos. Só teme a morte quem deseja a vida. Esta era a questão que me impedia de terminar a lista e agora esta acabada. Seu pavor me disse tudo. Desculpe-me o subterfúgio, mas precisava ler muito em seus olhos, palavras não bastariam. O medo pode ser instrumento eficaz em muitos meios. E costumam ser rigorosos em casos como o seu, caso de pena capital. Entende?

Gilliatt terminara sua xícara de café e a deixava em cima da escrivaninha, com a porcelana ainda fumegante. Olhava para Azazel, que perdera seu ar de indecisão e falava como se detentor de toda sabedoria. Argumentava coisas sem sentido para aquele homem simples.

Azazel percebendo que seu convidado ficara desconcertado resolveu detalhar sua demanda:

- Veja, minha função é relatar suas faltas. Para iniciar a lista tive que escarafunchar sua vida toda. Tenho meios de saber muitas coisas, sou persuasivo como pode imaginar, mas algumas dúvidas surgiram. Especialmente com seu repouso na cadeira Gild-Holm-Ur. Então me aproveitando do mal tempo que se aproximava pedi para que o imediato manobrasse a embarcação no momento adequado, para que recebemos uma onda de través. É certo que não esperava manobra tão descuidada de tão boa tripulação, a ponto de danificar a embarcação, mas isso será reparado em breve. Acontece que precisava, digamos assim, te dar um susto, ler seu medo.

- Como isso? Então tudo não passou de uma brincadeira?! Acha engraçado colocar a vida de todos em risco?! E que história é essa de escarafunchar minha vida?! Que trabalho é esse de listar minhas faltas?! Gilliatt estava indignado, mas se sentia intimidado, o coração disparado lhe deixava com a respiração ofegante, as artérias do pescoço lhe saltavam, a cabeça rodava, a vista se resumia a um funil e as narinas pareciam ter encolhido, não conseguia aspirar a quantidade de ar necessário para o momento.

- Não vamos esquecer de respirar, disse Azazel, que levantou e foi preparar mais uma bebida. Ele continuou a falar de costas para Gilliatt, como que dando privacidade à sofreguidão do homem: - O tempo está melhorando, depois da tempestade a bonança, como dizem. Não dê tanta importância ao pequeno imprevisto, como disse era para ter sido uma pequena manobra e como bem viu a tripulação é das melhores. Seria injusto dizer que parece hipocrisia você se ofender por eu colocar sua vida em risco se até pouco tempo você a estava oferecendo a Iemanjá. E eu precisava saber se isto era simplesmente por não prezá-la ou por suas razões com sua amada. Agora tenho claro, pois vi em seus olhos, que o Vossa Senhoria tem muito apresso pela vida, então só pode ser a segunda alternativa a verdadeira. Isto me causa grande inquietação e curiosidade, mas não cabe a mim julgar. Muito menos condenar. Só relato e para isso busco saber, tenho que investigar. Se minha função o desagrada, não ataque o mensageira. Estou aqui para cumprir minha função, mas nada impede que faça nos meus moldes. Beba, vai acalmá-lo. Azazel ofereceu uma bebida para Gilliatt, que bebeu mais para se ver livre daquele cálice que lhe era empurrado.

- Como ia dizendo, Gilliatt, tinha que resolver a gravidade de sua falha e até mesmo se esta ocorrera. E conclui, no fim das contas, que não ocorreu falta alguma. Você foi até a cadeira para deixar a maré encher e morrer, é verdade. Mas fez isto pois já se sentia no túmulo. Talvez pudesse desistir. E como uma criança que não reconhece o perigo caminhou para o abismo. Minha embarcação passava. Te resgatei. Não há o que listar e está acabado.

Neste momento Gilliatt ouviu a cadeira atrás de si arrastar com grande estrondo, se virou e viu um homem alto, com invejável espaldar, rosto fechado, olhar inquisitivo. Mas em que momento aquele homem entrara e desde quando estava sentado? Quem era? Gilliatt não sabia, a bebida lhe acalmara mas também lhe aturdia.

- Olá, Miguel! Já conhece meu hóspede? Disse um Azazel contente, como se tivesse recebendo um velho amigo.



Capítulo VI

- Deixe disso, sabe muito bem que o conheço. Pelo visto melhor que você. Como não há nada para listar?! Mais um dos seus jogos? Disparou Miguel à Azazel, sem se dirigir a Gilliatt, que naquele momento sequer respirava, mas espiava. Sentiu-se sentado diante de dois gigantes, cada um a seu modo, cada qual com sua carranca. Sentia-se com um mero peão em jogo de peças graúdas.

- Não seja rude meu caro, Miguel. Deixe que eu o apresente ao meu convidado desta noite. Azazel apontou para Gilliatt, mas Miguel não desviou o olhar.

- Sabe que não preciso de sua simpatia Azazel e que meu tempo é precioso.

- Sempre cumprindo seu dever a risca, não é? Almeja promoção, só pode! E se dirigindo para Gilliatt informou: - Este é o general, o barqueiro, o guardião... mais alguma função meu Senhor? Disse Azazel em tom de zombaria se dirigindo à Miguel, que parecia ainda mais impaciente. - Enfim, meu velho amigo Miguel.

- Deixe de embromação e deboche, sabe bem que não deve interferir... Azazel interrompeu: - E devia deixar essa pobre alma perecer enquanto passeava por estes mares? É carne muito nobre para os bichos do mar e me afeiçoei ao rapaz.

Nesta hora Miguel esbravejou: - Não zombe comigo! Liste suas faltas que vou leva-lo.

- Parece que não lhe bastam suas funções Miguel, quer ainda as minhas?!  E outra, o homem está bem, só tomou um pouco de água salgada, não pode leva-lo a lugar algum.

- Mas sua falta foi grave e sabe que se afogaria sem sua interferência, Azazel.

- Não temos certeza se ele se afogaria, o homem produziu feitos memoráveis, tem uma força descomunal, um folego infinito, nada como um peixe. Bem poderia ter se salvado, braçada a braçada até a costa, até outra embarcação, com ajuda de uma sereia quem sabe, possibilidades infinitas.

Neste momento Gilliatt se intrometeu: - Sr. Capitão, parece que neste ponto o Sr. Miguel tem certa razão, mesmo um exímio nadador não conseguiria...

- Calado! Interrompeu Azazel. Isto tem pouca importância, o que Miguel quer é a maldita lista com suas faltas, digo, com sua falta: recusar o presente, ter largado o osso ou seja lá a expressão que prefira, talvez suicídio, autocídio, autodestruição. Azazel ia recuperando o fôlego que tinha perdido junto com a calma por um instante.

– Ocorre que a prática não é bem vista, entende?. Embora você, Gilliatt, pudesse ter obtido sucesso em sua empreitada acredito que no caso devemos analisar suas razões. A intenção era acabar com a vida por desprezá-la? Não. Isto ficou muito claro há pouco. Você, Gilliatt, ama a vida e queria afogar tão somente seu sentimento, como estava impregnado dele não viu solução senão jogar a mistura toda no mar.  Resposta pouco arrazoada para problema tão complexo. Se a coisa fosse simples eu mesmo não perderia o sono com tais questões.

- Não podemos interferir nas escolhas deles, Azazel. Disse Miguel já com tom pacificador ao entender que não era mera brincadeira do capitão e condolente com suas indagações.

- Não entrarei nesta discussão novamente, Miguel. Você sabe que tenho convicções distintas e que para mim o livre arbítrio é uma utopia estúpida; se antes um sonho plausível hoje algo intangível. Azazel cuspia as palavras de forma ríspida.

- Temos regras a serem seguidas! Miguel retornava seu tom ameaçador.

Azazel, perdera seu sorriso de canto sempre presente naquela face. De pensativo passou a altivo, levantou-se de um salto, a cadeira em que estava sentado tombou para trás, levantou o braço, ao que Miguel arregalou os olhos, e, desceu sua mão na cara de Gilliatt. Este que estava sentado na cadeira, observando calado, ficou inteiramente aturdido pelo golpe que balançou toda sua caixa craniana, teve de cuspir o sangue que lhe enchia a boca antes mesmo de brandir com seu agressor.

Miguel, que não esperava por todo aquele desenlace assistiu surpreso e fixou os olhos no sangue em cima da escrivaninha, cuspido por Gilliatt e balbuciou entre dentes algo como: vivo!

Tudo aconteceu em segundos e antes que Gilliatt recupera-se o fôlego roubado pela bofetada, Azazel anunciou com ar pragmático: - Está aí sua regra a ser seguida, Miguel. É o que lhe basta?

- Isso é trapaça!

- Esse é o jogo. Não escrevi as regras, se você não gosta delas: azar! Sabe a quem reclamar. Se lhe falta coragem para  falar diretamente vá ter com o vigário, mas marque hora, pois este precisaria de mil ouvidos para escutar todos seus lamentos e lamuriações.

Miguel tinha os olhos em brasa. Sabia que nada estava sendo bem observado por Azazel, que era mago em distorcer, mas para fazer algo teria ele mesmo de quebrar seus desígnios, interpreta-los, arranjar todas as regras novamente a seu gosto. Isto podia trazer-lhes graves consequências, muito trabalho para pouco benefício. Como não encontrou saída naquele beco, resolveu retornar. Olhou mais uma vez para o sangue na mesa, voltou os olhos para Azazel, não disse mais nada, rodou nos calcanhares e saiu com os pensamentos embaralhados, com o orgulho lhe trançando as pernas e com a bochecha quente, como se ele mesmo tivesse recebido aquele tapa. Quando saiu da cabine a porta se fechou atrás dele com justo estrondo.

Gilliatt que mesmo após o tapa não conseguia pronunciar sequer uma sílaba olhava para Azazel, que parecia ter recuperado seu bom humor. O sorriso lhe crescia nas faces, os olhos brilhavam como em uma criança que admira sua arte bem feita.

- Gilliatt, não chore por esse ferimento de guerra. É algo desprezível diante de sua vitória.

- Mas eu nunca estive em guerra! Conseguiu balbuciar Gilliatt, ainda desconfiado.

- Não seja ingênuo, sempre há guerra e paz. E pela tarimba do general que enviaram sei que devo esperar retaliações. Mas por hora não devemos nos preocupar, vá se limpar e colocar algo nesta ferida, o jantar logo será servido e temos motivos para comemorar e cear como reis, o traje deve ser de gala, a bebida da melhor qualidade e a comida da mais saborosa. Talvez alguns convidados para animar. Um coral de virgens quem sabe. Vá e não esqueça de se aprontar, os marujos te guiaram até seus aposentos. Vamos festejar!

Gilliatt foi saindo da cabine do capitão Azazel, já  sem dor. Na verdade sentia certo êxtase. Estava contagiado com toda a alegria do capitão, ouvia a algazarra fora da cabine. Entendeu o que se passara: não era peão, era rei. E, ao final, concluiu que aquilo era a vitória, por uma simples razão: vivia.


Fim.

domingo, 10 de janeiro de 2016

AZAZEL E O DR.


AZAZEL E O DR.
Alessandro R. de M. Miranda


Capítulo I

- Olá Dr. Simão Bacamarte, permita que eu me apresente, Azazel, a seu inteiro dispor. Disse o homem de meia idade, traços marcantes, voz altiva, com olhar penetrante e uma simpatia transbordante, estendendo a mão para o Dr. e se postando impávido a sua frente.

- Por favor, entre, sente-se. Disse um Dr. Bacamarte surpreso com a aparição repentina de Sr. tão distinto, abrindo inteiramente a porta de seu consultório, mesmo próximo ao horário final de expediente na Casa Verde.

Azazel parou próximo à mesa, como que esperasse que o próprio Dr. Bacamarte se acomodasse em sua poltrona. Este o fez sem delongas, ainda um tanto atônito, talvez pela presença daquele homem que lhe instigava certa curiosidade, ou sabe-se lá por quê.

Após algum silêncio, preenchido pela presença de Azazel no consultório, que observava o médico com atenção e com um leve sorriso, Dr. Simão Bacamarte pigarreou, se aprumou na poltrona e disparou: - Pois bem, o que deseja?, o Dr., sempre tão sereno, sentiu sua voz trêmula.

Azazel aumentando o riso e se curvando em direção ao Dr., em cordial cumprimento disse em tom brincalhão: - A princípio, chá.

Então Dr. Simão Bacamarte parece que caiu em si, chacoalhou a cabeça, esfregou os olhos e logo se levantou afoito: - Ora, onde estão meus modos?! Por favor, queira sentar-se, acomode-se, vou pedir para nos trazerem um chá. Talvez não prefira um café? O grão é da região, torrado há pouco.

- Um café então. Disse o homem, se ajeitando em uma poltrona ao lado da mesinha de centro, de frente para o assento que o Dr. Simão Bacamarte outrora ocupava, antes de seu acesso de lucidez.

Dr. Simão agora pendurava o chapéu de seu convidado, a bengala ele preferiu não entregar; e se apoiava com as mãos e o queixo sobre ela, sentado, observando Bacamarte se desdobrar para pedir o melhor café para a criada e vir se alocar novamente na poltrona.

Bacamarte, já Senhor de si, olhou bem para a figura de Azazel e se deu conta de que nunca tinha visto tal figura na pequena cidade de Itaguaí-RJ, onde ficava a Casa Verde, o manicômio do qual o Dr. Simão era o idealizador, diretor, médico, pesquisador e cientista.

Todavia, a figura misteriosa foi logo dizendo, de forma compassada e harmoniosa: - Talvez o Dr. esteja curioso de quem sou, pois tão somente o nome não fala muito da pessoa, salvo daqueles ídolos, que vivem presos as suas figuras por amor à  idolatria de outros. Mas esta não é a natureza do meu jogo, lhe garanto. Venho ao Dr. por recomendação de D. João, tio de um paciente que aqui está internado, Costa. Pois que conversando com este tio, ele me disse que o Dr. tem teses bem distintas para tratamento de surtos psicóticos, aos mentecaptos. Aí está o objetivo de minha visita: gostaria de que Vossa Senhoria me honrasse com seu tratamento, pois há questões que a muito me atormentam.
Dr. Bacamarte, que escutava com atenção seu interlocutor assustou-se com batidas na porta, ao que gritou instintivamente: - Entre!

- Dr., o café.

- Ah, sim. Traga aqui, pode deixar que nos servimos. Como o Sr. prefere? Pois não, forte e doce. Tome. Cuidado! Está quente.

- Obrigado! Realmente, café de qualidade e a torra é nova, se sente pelo aroma.

- E como ia dizendo, quais questões que lhe afligem Sr. Azazel?

- Então concede-me a honra escutar minhas lamuriações?

- Antes de tudo sou um homem da ciência e teria muito bom grado em ouvir-te, te ajudar e também sanar minha curiosidade de qual será a questão que pesa tanto sobre teus ombros.

Azazel, olhou para Bacamarte, e um arrepio subiu pela espinha do Dr., gelou seus pés e fez suar suas mãos, os tímpanos soavam conforme o hino do silêncio, que se rompeu com a narrativa, do paciente:

- Saiba que estou louco.

- E o que te dá tanta certeza?
- Justamente não ter sido louco, antes. Isto me dá certeza que agora estou louco, este diagnóstico o Dr. pode ultrapassar, o que me assola são os motivos da loucura e por isso eu vim.

- Desculpe insistir, mas o que o Sr. chama de loucura, exatamente?

- Não se incomode Dr., sua insistência é plenamente plausível. Só passo por esse tema en passant por que a certeza da loucura já tenho, agora corro pela cura, e esta só pode ser alcançada na causa da loucura.

-    Então, qual seria a causa?

- O gigante que me assola é invisível. Tenho o dever de listar o mau. Mas tal tarefa tem sido árdua e desgastante. Inicialmente me colocava tempos inimagináveis a pensar acerca deste dever. Até que passei a fugir de mim mesmo, dos meus pensamentos, enfrentar minha consciência era batalha perdida e por isso não resistia mais a solidão, procurei me absorver em trabalho e distrações. Até que um sonho me intrigou: a morte seria o único remédio para o dever, mas até mesmo na agonia nos dizem para conservar a vida.

O Dr. ia tomando nota mental de tudo, realmente um paciente intrigante, pensava, tinha de ser estudado.

- Além disso, meu caro Dr., quem poderia definir quais as fronteiras do bom e do mau, e, ainda, seus critérios de julgamento. Será que isto existe, de formas distintas? – os atos não são direitos ou não a priori, mas a posteriori. Bom e mau são aplicados com um critério de ação e tomando sempre como ponto de referência uma experiência pessoal. Ora o julgamento de cada ação é algo individual, subjetivo, não há sentença justa dada por terceiro. A evolução humana não chegará a um consenso universal do que é o melhor ou pior. - Está me acompanhando Dr.? – Veja algumas insurreições, são ovacionadas por seus progressos humanos, apesar das execuções e histórias macabras que as perseguem, quantas revoluções são manchadas com sangue! E, ainda, até onde vai a liberdade do indivíduo em suas escolhas? Qual a consciência que temos de bom e mau? O critério é o resultado ou a intenção? Ou, no final, vale como a história for contada e por quem?

- Sr. Azazel, acredito que o café tenha feito efeito, o Sr. está um tanto quanto agitado, acalme-se.

- Perdão Dr. Bacamarte, se me excedi no tom, mas realmente este assunto é justamente o que me levou à  loucura.

- Sabe Sr. Azazel, não são raros os filósofos que assumiram graus de consciência distintas dos demais, mas nem por isso eles eram loucos propriamente ditos, apesar de alguns terem sido condenados com esta alegação.

- Entendo Dr., mas a minha loucura não advém tão somente das questões filosóficas, que indelicadamente eu descarreguei sem maiores cerimônias. Mereço ser internado nesta Casa pois não resisto a pressão e estou para abandonar o dever. Assim sofrerei ser destituído do meu escalão, rebaixado à terra.

- O Sr. então passa por um período de estresse, com seu superior nos calcanhares, além das questões filosóficas que lhe atormentam a mente e por isso se julga louco, ou a beira da loucura. Até o momento não vejo motivo para interná-lo, nem tenho certeza de sua loucura. Talvez uma droga para ansiedade, o boticário é próximo a mim, lhe dará a dose por mim indicada, na medida. O Sr. tem dormido bem?

O Dr. já foi pegando seu receituário e esperava passar algo para acalmar os ânimos do paciente, que apesar de não parecer louco tinha lá suas esquisitices. A pouco resmungou que o boticário poderia não ser tão próximo, mas como ele haveria de saber? E Simão se concentrou no receituário e deixou a questão pra lá, não quis amolar o paciente com sua curiosidade.

O psiquiatra resolveu entregar a receita à Azazel, disse que outras recomendações seriam dadas pelo boticário e que voltasse no dia seguinte, ao entardecer, já que gostaria de consultar o paciente novamente.

O paciente já com chapéu na mão cumprimentou o Dr., agradeceu a cordialidade e confirmou que viria sem falta na próxima consulta, fixando os olhos nas olheiras do médico e percebendo que já haviam se passado horas desde que iniciaram a conversa.

Capítulo II

Apesar do cansaço o Dr. Simão Bacamarte não deixou de dar algumas recomendações aos enfermeiros da Casa Verde, naquela noite que atendera até tarde o Sr. Azazel. Pediu que investigassem aquele misterioso paciente, homem tão letrado devia ter recebido instrução no estrangeiro, com certeza, seria um homem de posses e bom gosto, seria fácil assuntar sua vida com seus criados. Devia estar hospedado no hotel da cidade, construído em razão dos parentes dos mentecapitos de cidades vizinhas quererem visitar seus entes e o manicômio não permitir o pouso de visitas.

Todavia, a única informação que os criados do Dr. Simão Bacamarte conseguiram foi a de que o Sr. Azazel estava com um pequeno grupo, mas que ficaram ao longe, aguardando a consulta terminar e que ao se reunirem, dobraram a esquina e simplesmente desapareceram. No hotel não havia qualquer registro de Azazel e ninguém sabia dizer de onde vinha aquele Sr. A única informação que o Dr. obteve foi sua própria impressão, de que o Sr. Azazel era um homem simpático, misterioso e que seu caso era de fato intrigante: não é todo dia que um paciente aparece querendo ser internado, alegando ser louco. A loucura age de forma vil, o último a saber o seu estado é o enfermo.

O Dr. passara a noite em claro, pensando nas questões ventiladas por Azazel. Qual afinal era a fronteira do bem e do mal? Perguntava para sua mulher, que olhava atônita, no meio da noite, um Simão Bacamarte suado, agitado, que gesticulava, - o que importa é o resultado da ação ou a intenção desta?, levantava da cama, - que diabos! também pudera um homem enlouquecer com tais questões.

O dia amanheceu com o Dr. sentado em sua varanda, pensativo, com um café já frio na mão e uma nesga de queijo na outra, olhando o horizonte, ruminando: algumas ações transcendem o bem e o mal; matar é algo hediondo; mesmo se a vítima for um tirano?; mesmo que para salvar centenas, milhares de outras vidas?; o que é certo hoje já foi horrendo outrora; seria o certo e o errado algo efêmero e temporal?; se não sabemos sequer o que é certo e errado, o que esperar, qual o usual, o normal? como dizer que somos livres, que nos governamos, se não conseguimos fazer um plano sequer para amanhã, pois não  sabemos ao certo se estaremos aqui?; qual oráculo poderá prever como julgarão nossas ações no futuro? Os franceses bem diferenciam insurreição de revolta, com palavras a coisa é mais simples e ainda assim questão complexa.

E estas questões iam se apoderando do espírito do Dr., que vasculhava sua mente, tudo que havia aprendido, todos os métodos científicos e nada respondia a contento. O café continuava na xícara, e o queijo tinha sido esquecido, o Dr. estava perdido em seus pensamentos.

Afinal, que profissão é essa de listar o mau? Um promotor? Sim, com certeza seria esta a função do paciente – pensava o Dr. – listar as ações ruins dos homens e oferecer denúncia contra eles.

E quais as distrações que conseguiram aliviar o paciente de seu dever? Qual o trabalho que lhe fez desligar-se de sua própria consciência? O dia ia passando e as questões atormentavam cada vez mais o Dr. Simão Bacamarte, que se sentia esgotado.

Capítulo III

Próximo ao horário da consulta do Sr. Azazel o Dr. Bacamarte já estava ansioso, repassava cada detalhe do encontro passado em sua mente e uma angústia crescia dentro dele.

Batidas na porta chamaram a atenção do Dr. Simão, que encontrou Azazel a porta, muito bem vestido e com a mesma cordialidade de outrora, nada que demonstrasse o peso dos questionamentos que dizia carregar e já se faziam sentir no Dr. Bacamarte.

Após os cumprimentos iniciais os dois se sentaram de frente, nas poltronas confortáveis do consultório principal da Casa Verde, ocupada desde sua conclusão pelo Dr. Simão.

- Dr. Simão Bacamarte, alienista de renome, parece abatido! Espero não terem sido minhas questões que lhe atormentaram o sono. Falou Azazel, com voz afável.

- Não nego, Sr. Azazel, que seus questionamentos me intrigaram bastante e que fiquei a pensar neles algum tempo. O Dr. não quis revelar seu calvário durante noite e dia, pensando no encontro anterior que tivera com seu interlocutor.

Azazel não deu atenção a explicação do Dr., como se este fosse um tormento já superado e continuou, com um certo prazer: - Talvez o Dr. queira desistir de nossas sessões?

- Não, de forma alguma, o seu caso me instiga. Só não digeri ainda a sua sofreguidão diante da dualidade do bem e do mal. Esclareceu o Dr., e continuou: - O bem e o mal se confundem. O dualismo nem sempre tem seus opostos definidos com clareza e o indivíduo muitas vezes se contrapõem a este cisma, entre certo e errado.

- Sim, é isto! Concordou Azazel, de pronto. E imagine o Dr. eu ter de trabalhar com tão árduas questões, durante todo tempo. Minha incumbência de levantar as faltas é deveras desgastante, mas sempre a fiz com virtude. Ocorre que se o dualismo realmente não é inteiramente verdadeiro, todo o meu labor está incorreto, foi em vão. Pior! Fiz sofrer almas que não mereciam. E, agora, me veem com essa: sua função é esta, faça ou será decaído, sua função será substituída. Ora, quem eles pensam que são?! Digo eles por que há um complô, cochicham as minhas costas, sinto os olhares, os ventos me trazem os sussurros. Eles não entendem que não há nada bem definido, que os problemas são muitos. Acredito até que o melhor mesmo seria descentralizar tudo, como fora antes. Mas não! Preferem inundar tudo a concordarem comigo. E se não estou certo, que se abra o debate.

- Pelo que entendi o Sr. é servidor público, promotor ou procurador talvez? assuntou Dr. Simão Bacamarte.

- Público?! De público aquilo não tem nada! É tudo privado, particular. E não para por aí, a coisa toda funciona pela vontade de um só. Veja que disparate! É claro que o Dr. concorda comigo, o indivíduo só pode governar a si próprio, não é?

- E a escravidão? Apesar desta forma de trabalho estar no fim, com o movimento abolicionista tomando corpo, é uma forma de governar o outro. Não? Indagou o Dr. Bacamarte, que se deixara levar pelos delírios do paciente.

-    Não falo do governo do corpo, Dr. Bacamarte, falo da alma. A alma humana é voluptuosa, densa, irascível, mas também facilmente escravizada. E como elencar os atos de uma alma escrava e ainda por cima qualificar tais ações em dois polos distintos, bom e mau? Conceito que se altera do dia para a noite. Me responda Dr. estas questões e assim me cure, ou me interne de uma vez, chame o boticário, faça sua mágica, estou louco, não quero mais o tormento deste pensar.

- Sobre essa questão da loucura, Sr. Azazel, veja, minha doutrina psiquiátrica é a seguinte: Divido os mentecaptos em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passo às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Assim, apesar do seu pensamento complexo o Sr. não parece apresentar traços desta doença, podemos classificar seus padrões como normais.

Após o Dr. Bacamarte revelar seu diagnóstico, olhou bem para o Sr. Azazel, que sorrindo levemente levantou-se, andou pelo consultório e parou próxima a janela. O Dr. Bacamarte aproximou-se e os dois passaram a observar os transeuntes da cidade de Itaguaí-RJ. A noite já caia e podia-se ver aqueles cidadãos que voltavam da missa e também os que se dirigiam aos bailes. Então o Sr. Azazel disse sem tirar os olhos da rua:

- E o Dr. poderia me informar quais são os padrões normais? Quem os estabelece e por qual razão?

O Dr. Bacamarte começou a balbuciar algo, como se querendo fundamentar seu diagnóstico prematuro, mas nada lhe veio a mente, a imagem do Sr. Azazel, ao seu lado, de alguma forma lhe causava um certo entorpecimento.

Azazel continuou:

- Permita-me, então, ilustrar nosso diálogo com um exemplo do que eu ia dizendo anteriormente. O caso me chamou atenção e me deu um trabalhão danado. Ouça:

- Caim, o primeiro filho nascido de Adão e Eva, também o primeiro assassino da humanidade.

O Dr. Bacamarte fez menção de interromper, mas resolveu deixar o Sr. Azazel terminar sua narrativa.

- Caim, que mata seu irmão pois não aguenta a injustiça divina, de ver rejeitada, pelo Senhor, sua oferenda, em detrimento daquela de seu irmão. Caim mata seu caçula por motivo vil, inveja. Por seu crime é marcado e  condenado a andar pelo mundo, testemunhando atrocidades contra o ser humano: Uma tribo resolve cultuar o bezerro dourado enquanto esperam pela revelação divina? Que os matem. As tribos desafiam Josué? Que coisas estranhíssimas ocorram e todo mundo morra para facilitar as coisas. Sodoma maltrata os visitantes angelicais? Que todos ardam em chamas, as crianças que nada fizeram inclusas.

– Estou divagando um pouco, me desculpe, onde eu estava? Ah sim, Caim! Dizia Azazel retornando teatralmente à história, com grande empolgação: Este rapaz me deu um trabalho desgraçado. Tudo bem, ele matou o irmão. Mas foi tudo armação, a intenção dele nunca foi esta, só estava perdido, desejoso de ser o mais amado por seu Senhor. Logo, ele não estava em suas faculdades mentais perfeitas, era um escravo do seu Senhor. Mas a intenção não foi levada em conta. Importou o resultado: a morte! E por isso deveria ser condenado. Eu deveria acusá-lo e requerer sua condenação. Mas que pena pedir? Era o primeiro caso de assassinato que tínhamos. Só por aí já tivemos que partir de uma premissa, que Caim sabia que matar era errado. Também deveria saber que seria punido, mesmo sequer podendo imaginar sua pena. Mais tarde percebemos que vocês não entendem bem o que pode e o que não pode, então mandamos um emissário com 10 mandamentos básicos e outros ensinamentos, mas o rapaz não durou muito. Enfim, Caim foi uma dor de cabeça daquelas, não estávamos preparados. Acredito até que a pena foi excessiva. E o pior que eu já sei que logo virá um Português espalhar esta história; mas o que queriam!? As coisas estavam no começo, as engrenagens ainda não estavam azeitadas.

- Pare lá! O Sr. está me dizendo que... Então Dr. Simão Bacamarte se calou, viu que tinha se deixado levar pelos questionamentos do próprio paciente e não lhe dera ouvidos, pelo visto realmente havia traços de loucura. O Dr. Bacamarte se martirizava, nunca tinha dado um diagnóstico errado. Agora teria que voltar atrás, concordar com o Sr. Azazel, dizer que ele realmente era louco, chamar os enfermeiros, meter o enfermo na camisa de força, entrouxar trapos em sua boca, não, o paciente não era violento, muito pelo contrário, um amável senhor, mas e se ele contasse o erro do já famoso Dr. Simão Bacamarte? E se todos soubessem que errou de forma crassa? O Dr. Simão, atônito, se perguntava. Por que não esperei para dar o diagnóstico? O paciente parecia muito bem, agora que vêm com esta conversa, de Caim, que estava lá, e esse tal emissário só poderia ser...

- O Dr. está passando bem? perguntou cordialmente Sr. Azazel, já puxando uma cadeira para o Dr. Bacamarte, que estava pálido, com os olhos arregalados, petrificado.

- Não posso dizer que me canso deste olhar. E retomou Azazel: - Muito me espanta o Dr., com tais pensamentos! Pensei que seus princípios fossem mais nobres. E se só pensa desta forma por pavor da opinião pública, não deixe de me escutar, como fez anteriormente e agora se arrepende. Estou louco, não sou mentiroso. Minha história é totalmente plausível e aceitável. É bem verdade que alguns trabalhos podem enlouquecer. Lembre-se de Pôncio Pilatos, um julgamento muito mais fácil que o de Caim, aquele de Jesus, e o velho pirou, caiu em parafuso, julgou mal e até hoje sofre o expurgo da opinião pública.

- Mas o Sr. afirma que é o Diabo?!

- Há certa confusão quanto a isso, também tenho primos e camaradas. Existe alguma hierarquia na coisa toda. Um navio com leme, vela e tosse, por assim dizer. Antes minha patente era distinta, a dos colegas também; trocaram administrativamente de todo o departamento; parece que um tal de Miguel assumiu tudo por ter uma visão mais ajustada com as ordens superiores. Já lhe disse que o nome fala pouco do ser. Mas prefiro Azazel, se não se importa. E o Dr. também com essa coisa de dualismo?! Ou louco ou o diabo. Por que não os dois? E se lhe causo algum temor: Vá reclamar com o vigário! Pois de minha educação acredito que o Dr. não possa se queixar.

- Sim! Digo, não! Sempre muito educado, é verdade.

- Então deixe de tolices homem, respire, tome um gole disto, vai restabelece-lo.

Dr. Bacamarte, atordoado, tomou o líquido que lhe desceu como pinga e lhe impregnou de altivez. Mais uma vez teve medo de chamar seus auxiliares e descobrirem que tinha errado, o medo das revelações do paciente não existiam.

Vendo que o Dr. Bacamarte se recompusera, Azazel continuou:

- Também o Dr. não pode dizer que minhas acusações são injustas. Pode afirmar até que as tentações são muitas, que estou em vantagem, que o pecado é fácil de cometer. Eu mesmo não resisto a alguns, o que vêm me trazendo alguns tormentos e tantas alegrias. Aí vou concordar, mas lembra-lo que não fui eu que construí o sistema todo. Só cumpro ordens, algumas do jeito é verdade. Estas inclusive que estão a me enlouquecer, pois como já disse as diretrizes não são claras e com poucas reclamações já querem me derrubar, me tirar as janelas e ignorar meu conhecimento. Talvez eu mesmo desça. Há tempos venho preferindo os de cá.

Capítulo IV

Dr. Bacamarte se sentia perdido, como se caindo em um abismo, tonto, atordoado, não sabia mais se por causa da vergonha de seu erro, nem sabia mais se estava errado, talvez a bebida tenha o deixado diferente, quem era aquele na sua frente, Azazel, já ouvira esse nome. E as indagações desse cavalheiro? Se a dualidade não fosse verdade suas teorias estariam acabadas, todos os loucos deveriam ser soltos imediatamente. Mais essa!

Azazel notando o estado do Dr. Simão Bacamarte soltou uma gargalhada e já foi falando:

- Mais uma vez nos estendemos no diálogo Dr. Bacamarte, me perdoe tomar tanto de seu tempo. Vou deixa-lo. Até me sinto melhor agora que desabafei. Talvez o Dr. estivesse mesmo certo, não há loucura, apenas algumas perturbações. Ou o Dr. tenha me curado, o que acha? Azazel já estava com seus pertences, a porta por trás dele se abriu, ele fez uma reverência afetada, virou nos calcanhares, bengala embaixo do braço, passo firme, sem dúvida um homem elegante.

Dr. Simão foi despertando de seus pensamentos, chegando ao fim de sua queda, já com o fechar de portas de seu consultório e saída inesperada de seu paciente. Mas se estava curado não era mais paciente. Estava louco? O alienista ainda se perdia em seus pensamentos e sequer conseguiu se levantar da cadeira, apesar de querer resistir à saída de Azazel.

O Dr. Bacamarte vai para a casa exausto, já tarde e se enclausura em seu escritório particular. Mal sabia ele que aquela era a noite da rebelião de Itaguaí, contra a Casa Verde e o alienista, liderado por um tal Porfírio. Como não enlouquecer!?


Fim.